Neste longo (mas interessante) artigo enviado ao Blog, o comunicador Omar ‘Babá’ Torres discorre sobre a seca no semiárido nordestino, ressaltando que a temática não é de hoje e tem servido para manter velhas práticas políticas de poder.
Confiram:
Tenho lido com atenção artigos escritos pelo ex-deputado Oswaldo Coelho, onde ele sempre expressa severas críticas a ausência de políticas públicas que solucionem os graves problemas do nordeste e do semiárido. Recentemente ele voltou à questão com a matéria intitulada “Uma brutal desigualdade” onde, mais uma vez, suas palavras soam veementes e revoltadas. “(É preciso olhar urgentemente para o semiárido nordestino), é brutal a desigualdade socioeconômica entre as regiões do Centro-Sul e o semiárido nordestino. Chegou a hora de pôr fim às desigualdades inter-regionais no Brasil. A Federação não pode contemplar isso de braços cruzados, indiferente à sorte dos nossos patrícios do semiárido. Está na hora de um basta!”
As verdades contidas nestas duras palavras revigoram a imensa indignação de quem tem consciência das origens e consequências de tão funestos males. Recuando ao ano de 1877, quando existia o Norte e o Nordeste não tinha sido ainda inventado, encontramos registros da utilização da seca como grande arma política. O tema emocionava, mobilizava e servia de argumento para exigir recursos financeiros, construção de obras, cargos no Estado, etc. A decadência das atividades econômicas principais, produção de açúcar e algodão, fortaleciam o discurso da seca, que passou a ser atividade mais constante e lucrativa.
Mesmo as manifestações de descontentamento dos dominados, como o banditismo e as revoltas messiânicas e o atraso econômico e social da área foram atribuídos à seca e reforçaram o apelo pela solução. Os veementes discursos traçando quadros de horrores, descrevendo misérias e flagelos, compuseram a imagem de uma área miserável, sofrida e pedinte e se constituíram em fortalecido fio condutor da unificação dos interesses regionais e detonador de práticas políticas e econômicas que envolveram todos os estados sujeitos a este fenômeno climático. Da união dos grandes proprietários da Zona da Mata com os comerciantes das cidades, os produtores de algodão e os criadores de gado, classes privilegiadas, saíram os porta-vozes dos sofredores e o robustecimento da elite regional capaz de sobreviver, até os dias de hoje, com estes mesmos argumentos.
O termo Nordeste começou a ser usado para designar a área de atuação da recém-criada Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), predecessor do DNOCS, no distante ano de 1919. As elites regionais se beneficiaram com a criação do órgão que abrigou seus filhos, só eles tinham estudo, que influenciavam na definição de onde e como aplicar os recursos públicos de maneira que melhor beneficiasse aos seus interesses. A seca, portanto, é mãe do Nordeste rural, seco e pobre. A cultura arraigada nas gentes rurais reproduzia a visão conveniente à classe dominante de que a seca era fatalidade e a pobreza uma sina, subordinando assim o ser humano e a sua ação a forças externas e incontroláveis como as forças da natureza e do destino.
E na vivência da tensão entre revolta e acomodações, vimos os seguintes marcos:
1) Fase hidráulica – teve início no começo do século XX e estendeu-se até os anos 1950; criação do IOCS, depois substituído pelo IFOCS e, finalmente, DNOCS. Teve como plano de ação construções de açudes e discurso político a favor da irrigação. A pobreza rural era atribuída, sobretudo, a causas naturais, de modo que o problema seria resolvido através do combate à seca;
2) Fase de transição para o desenvolvimento – com início ainda nos 40 e se estendeu até 1959. Foram criadas a CHESF e a CVSF que depois virou SUVALE e, por fim, CODEVASF, inspiradas na experiência do Tennesse Valley Authority (TVA), dos Estados Unidos. Fase do discurso desenvolvimentista defendendo o desenvolvimento regional e a crença de que ação planejadora do Estado era essencial para impulsionar o desenvolvimento. As ações concentraram-se no Vale do São Francisco, que deveria ser transformado seguindo o modelo americano do Vale do Rio Mississipi.
3) Fase da modernização reformista – É fase desenvolvimentista que se estende entre 1959 e o golpe de 1964. Marcada pela emergência de um processo pioneiro de planejamento regional, incluindo a criação da SUDENE, que aponta na direção de certa descentralização política e administrativa. O relatório do GTDN – Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste, “Uma Política de Desenvolvimento Econômico para o Nordeste”, foi o marco de início dessa fase. Desenvolveu-se a ideia de que a pobreza é um problema socioeconômico que pode ser vencido através de medidas políticas.
4) Fase da modernização conservadora – Vai de 1964 a 1985 (período da ditadura militar), quando as secas voltaram a ser encaradas como determinantes principais da pobreza regional. Chamada de fase do desenvolvimento integrado e da emergência dos “grandes projetos” de desenvolvimento, tais como o PROTERRA, o POLONORDESTE, e o PROJETO SERTANEJO, substituídos depois pelo PROJETO NORDESTE, SÃO VICENTE e PADRE CÍCERO. A pobreza (um problema social) passa a ser vista como uma questão central a ser vencida através de ações baseadas no planejamento técnico.
5) Fase do desenvolvimento sustentável – Dos anos 90 até hoje. O caráter minimamente social dos programas da fase anterior é novamente substituído por outro, de cunho mais econômico. Compreensão de que o desenvolvimento é fundado nas ideias de descentralização, participação e privatização, de modo que o Estado planejador é substituído pelo Estado parceiro. Em nome da descentralização desencadeia-se um processo de estadualização e de municipalização das políticas e das ações.
Ao longo dos tempos produziram-se muitos estudos de excelente qualidade, centenas de projetos que poderiam de algum modo contribuir para a diminuição da pobreza na região, atos públicos, congressos, seminários, reuniões, fóruns, enfim, tudo o que se pode imaginar. E por que, apesar dos bilhões de dólares gastos, a pobreza continua tão presente no semiárido do Nordeste? Estudos patrocinados por Winrock International e a Faculdade Integrada da Bahia, que envolveram professores de várias universidades, evidenciaram que as intervenções para o desenvolvimento do Nordeste tem sido marcadas por descontinuidades e rupturas de programas e órgãos, sempre sujeitas a onda do momento político.
Passa-se facilmente da centralização para a descentralização, transferem-se facilmente programas de um órgão para outro e estes de um político para outro, interrompem-se ou abandonam-se programas e obras, faz-se denúncias, sindicâncias, etc., mas sem perder jamais o fio que conduz o beneficiamento de poucos à custa do prejuízo de muitos e sem provocar grandes escândalos.
A única linha que nunca foi rompida em toda a trajetória é a da corrupção, do desvio e da malversação do dinheiro público. A quantidade de dinheiro aplicado na região teria sido suficiente para erradicar a pobreza existente. O que se constatou foi que a maior parte desses recursos não chegou ao destino. Foi desviada e concentrou-se em algumas poucas mãos. Dados da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) mostram que ao longo do século 20, nesta região, morreram vinte milhões de pessoas, sobretudo crianças, por causa da fome (a “doença da pobreza”). Com certeza uma das maiores tragédias ou um dos maiores genocídios da história da humanidade. Entre 1979 e 1983, três milhões de crianças morreram de fome e de desnutrição lenta. Dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios) apontam que até 2000 mais de 90% da população rural do Nordeste vivia abaixo da linha de pobreza e 70% dela abaixo da linha de miséria.
O planejamento para o Nordeste sempre foi pensado sob a ótica capitalista do crescimento econômico predatório, descomprometido com o desenvolvimento e com a justiça social. A região sempre foi vista a partir de cima, mas não a partir de dentro, e as elites tradicionais, latifundiárias e comerciantes, controladoras dos organismos e das políticas públicas, nunca arredaram o pé do poder, revezando-se entre elas.
As areias ressequidas dos riachos, os inóspitos mandacarus e xiquexiques, a árida caatinga e os esquálidos sertanejos são testemunhas de que o problema básico do Nordeste não é de ordem física, mas social, não é climático, mas derivado da estrutura política e social que não permite preparar a economia e a sociedade da região para enfrentar o impacto das secas. O problema não é de escassez, mas de excessos. O escasso é suficiente para promover a vida, enquanto os excessos de projetos, de programas, de desvios ou malversação de recursos, de concentração de poder e de maus representantes são alimentos da morte.
Na década de 50a Wilson Lins escreveu que: ”a política ali, desde o tempo da Colônia, tem um sentido prático. O homem que tem o que perder, para maior garantia de seus haveres, assume o poder político”. Para isso eles a reinventaram, transformaram-na numa indústria, numa arte, num modo específico de enriquecimento e num instrumento de manipulação ou de convencimento. Os representantes das velhas famílias com seus sequazes tornaram-se especialistas em política. Muitos deles tornaram-se doutores nas cidades grandes para continuar a missão dos pais.
É sobre essa estrutura arcaica, mas ainda sólida, que tudo está muito bem assentado. E se ela não for removida, as gerações que sucederem a do ex-deputado Oswaldo Coelho viverão como a atual, e as que lhe antecederam, utilizando com maestria o ensinamento do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “se queremos que tudo se mantenha, é preciso que tudo mude”.
Omar Babá Torres/Comunicador
Fonte: Blog Do Carlos Britto